quinta-feira, 3 de abril de 2014

Com um chip a mais – uma reflexão sobre as transformações das bagagens inatas

Trabalho com crianças há três décadas. A cada época, fui percebendo que as crianças nascem com suas bagagens, que depois vão sendo acrescidas, claro, com a convivência e os estímulos ambientais e sociais. Estas bagagens inatas são mais ou menos parecidas, de criança para criança, mas eu percebo uma mudança  de época para época, vou explicar.
Nos anos 80/90, me lembro bem que os bebês eram embrulhadinhos como “charutinhos”, as mãozinhas ficavam presas em xis e de tão durinhas, não se mexiam. Assim permaneciam por seis meses ou mais. Hoje, com a moda de álbum newborn, os recém nascidos posam para fotos nas mais variadas posições, peladinhos e com adornos sugestivos. Os da época passada, começavam a andar com mais de um ano e meio, às vezes quase dois anos, quando iniciavam as brincadeiras no “velotrol” – a motoquinha – ralavam seus joelhos, sujavam as mãos, andavam descalços e tinham uma capacidade incrível de transformar uma caixinha de fósforo em mil outros brinquedos. Assisti tudo isso numa escola em São Bernardo do Campo, que tinha um belo pátio, com areia, brinquedos enormes e de ferro (agora a moda é plástico), uma árvore goiabeira que ficava infestada em certa época do ano, onde as crianças de cinco, seis anos aprendiam com grande habilidade a subir e pegar a fruta no pé.
Com o tempo, eu fui aprendendo com os adolescentes da escola a mexer nos computadores, que em meados de 2000, pode-se imaginar como eram primitivos nas escolas de São Paulo, porém eram uma novidade absurda para mim, que fiz meu TCC (que se chamava Projeto Final) da faculdade de Pedagogia, na máquina de datilografar portátil Remington do meu pai. Estes mesmos adolescentes, inclusive os alunos mais novos de oito, nove anos foram me mostrando que dançar, jogar bola, fazer um brinquedo de sucata era “trabalho” escolar ou atividade extracurricular, não fazia parte da sua atividade recreativa ou normal do dia a dia. Esta geração já estava se transformando na turma que hoje domina a tecnologia como ninguém.
Atualmente faço a coordenação pedagógica de uma escola infantil em São Paulo, me surpreendo com um dos temas que estamos escolhendo para nosso projeto interdisciplinar anual: “As brincadeiras de antigamente”, onde meus alunos de três a seis anos vão poder resgatar as cantigas de roda, as brincadeiras de pião, bolinhas de gude, pular corda, “Mãe da Rua” entre tantas outras que queremos eternizar na memória destes pequenos. Este momento é propício para fazermos esta geração se mexer, correr, pular, se sujar. Sim, se sujar, porque isso não é mais normal para os dias de hoje, meus aluninhos não sabem sujar as mãozinhas de areia, fazer bolo de barro, enfeitar de florzinhas e oferecer para a professora “comer”. Quando lhes oferecemos pintura a dedo - antialérgica claro, pois todos temos muitas alergias agora e tomamos tantos corticóides - as crianças ficam com aflição e terminam logo sua pintura, para ir rapidinho lavar as mãos. O tempo gasto numa atividade de pintura, colagem ou desenho é mínimo, tanto por parte das crianças, quanto por parte dos professores, que estão sempre correndo atrás do ponteiro do relógio, pois há muito que se fazer: balet, judô, capoeira, natação, inglês extra etc etc. Os meus aluninhos de um ano, eu disse um ano, têm sim uma capacidade incrível de concentração, uma concentração que pode durar mais de dez minutos (o esperado para esta idade é concentração de dois a três minutos), e ocorre quando estão perto de um eletrônico, podem assistir a um filme de música e desenho infantil inteiro, sem piscar, são muito competentes ao pegar um celular touchscreen nas mãos e acionar sozinhos o vídeo ou a música que querem ouvir, a mesma competência apresentam para desbloquear e usar o tablet de seus pais, deslizando seus dedinhos pela tela e até para tirar uma foto e procurar para olhar se ficou boa, imediatamente após o clic, virando o aparelho para verificar seu verso.
Outro dia, um pequeno de três aninhos entrou em minha sala e viu meu tablet sobre a mesa, enquanto eu perguntava por que ele estava chorando (estava com saudades da mãe que foi trabalhar no primeiro dia de volta das férias), ele olhava atentamente para o aparelho e enxugando suas lágrimas me perguntou: “Seu tablet tem wi-fi?” Preciso comentar?

O que quero ilustrar aqui não é crítica, não é que algo está fora do lugar, é apenas uma reflexão sobre como cada geração nasce com uma bagagem adequada à época e à evolução humana. Percebo que esta geração nasceu com um “chip” que não tinham os que nasceram há trinta anos atrás. É a geração do dedinho, a geração touchscreen. 








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