Trabalho com crianças há três décadas. A cada época, fui
percebendo que as crianças nascem com suas bagagens, que depois vão sendo
acrescidas, claro, com a convivência e os estímulos ambientais e sociais. Estas
bagagens inatas são mais ou menos parecidas, de criança para criança, mas eu
percebo uma mudança de época para época,
vou explicar.
Nos anos 80/90, me lembro bem que os bebês eram
embrulhadinhos como “charutinhos”, as mãozinhas ficavam presas em xis e de tão
durinhas, não se mexiam. Assim permaneciam por seis meses ou mais. Hoje, com a
moda de álbum newborn, os recém nascidos posam para fotos nas mais variadas
posições, peladinhos e com adornos sugestivos. Os da época passada, começavam a
andar com mais de um ano e meio, às vezes quase dois anos, quando iniciavam as
brincadeiras no “velotrol” – a motoquinha – ralavam seus joelhos, sujavam as mãos,
andavam descalços e tinham uma capacidade incrível de transformar uma caixinha
de fósforo em mil outros brinquedos. Assisti tudo isso numa escola em São
Bernardo do Campo, que tinha um belo pátio, com areia, brinquedos enormes e de
ferro (agora a moda é plástico), uma árvore goiabeira que ficava infestada em
certa época do ano, onde as crianças de cinco, seis anos aprendiam com grande
habilidade a subir e pegar a fruta no pé.
Com o tempo, eu fui aprendendo com os adolescentes da
escola a mexer nos computadores, que em meados de 2000, pode-se imaginar como
eram primitivos nas escolas de São Paulo, porém eram uma novidade absurda para
mim, que fiz meu TCC (que se chamava Projeto Final) da faculdade de Pedagogia,
na máquina de datilografar portátil Remington do meu pai. Estes mesmos
adolescentes, inclusive os alunos mais novos de oito, nove anos foram me
mostrando que dançar, jogar bola, fazer um brinquedo de sucata era “trabalho”
escolar ou atividade extracurricular, não fazia parte da sua atividade
recreativa ou normal do dia a dia. Esta geração já estava se transformando na
turma que hoje domina a tecnologia como ninguém.
Atualmente faço a coordenação pedagógica de uma escola
infantil em São Paulo, me surpreendo com um dos temas que estamos escolhendo
para nosso projeto interdisciplinar anual: “As brincadeiras de antigamente”,
onde meus alunos de três a seis anos vão poder resgatar as cantigas de roda, as
brincadeiras de pião, bolinhas de gude, pular corda, “Mãe da Rua” entre tantas
outras que queremos eternizar na memória destes pequenos. Este momento é propício
para fazermos esta geração se mexer, correr, pular, se sujar. Sim, se sujar,
porque isso não é mais normal para os dias de hoje, meus aluninhos não sabem
sujar as mãozinhas de areia, fazer bolo de barro, enfeitar de florzinhas e
oferecer para a professora “comer”. Quando lhes oferecemos pintura a dedo -
antialérgica claro, pois todos temos muitas alergias agora e tomamos tantos
corticóides - as crianças ficam com aflição e terminam logo sua pintura, para
ir rapidinho lavar as mãos. O tempo gasto numa atividade de pintura, colagem ou
desenho é mínimo, tanto por parte das crianças, quanto por parte dos
professores, que estão sempre correndo atrás do ponteiro do relógio, pois há
muito que se fazer: balet, judô, capoeira, natação, inglês extra etc etc. Os
meus aluninhos de um ano, eu disse um ano, têm sim uma capacidade incrível de
concentração, uma concentração que pode durar mais de dez minutos (o esperado
para esta idade é concentração de dois a três minutos), e ocorre quando estão
perto de um eletrônico, podem assistir a um filme de música e desenho infantil
inteiro, sem piscar, são muito competentes ao pegar um celular touchscreen nas
mãos e acionar sozinhos o vídeo ou a música que querem ouvir, a mesma
competência apresentam para desbloquear e usar o tablet de seus pais,
deslizando seus dedinhos pela tela e até para tirar uma foto e procurar para
olhar se ficou boa, imediatamente após o clic, virando o aparelho para
verificar seu verso.
Outro dia, um pequeno de três aninhos entrou em minha
sala e viu meu tablet sobre a mesa, enquanto eu perguntava por que ele estava
chorando (estava com saudades da mãe que foi trabalhar no primeiro dia de volta
das férias), ele olhava atentamente para o aparelho e enxugando suas lágrimas
me perguntou: “Seu tablet tem wi-fi?” Preciso comentar?
O que quero ilustrar aqui não é crítica, não é que algo
está fora do lugar, é apenas uma reflexão sobre como cada geração nasce com uma
bagagem adequada à época e à evolução humana. Percebo que esta geração nasceu
com um “chip” que não tinham os que nasceram há trinta anos atrás. É a geração
do dedinho, a geração touchscreen.
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